CONSELHO PROFISSIONAL
AUTARQUIA CORPORATIVA OU CORPORAÇÃO PROFISSIONAL
Texto: Valéria A.B.Salgado (dezembro/2019)
O formato jurídico-institucional dos conselhos profissionais surgiu dentro do arcabouço jurídico do Estado Novo e ao amparo da Constituição Federal de 1937, promulgada pelo ex-Presidente Getúlio Vagas, como um modelo de associação profissional ou sindical, regularmente reconhecido pelo Estado para exercer funções delegadas Pelo Poder Público sobre seus associados (Salgado V. A., 2012).
Os primeiros conselhos de profissão instituídos no País sob a luz da autorização da Carta de 1937, para exercer a fiscalização de profissões regulamentadas, tinham substrato jurígeno associativo-corporativo. Ainda que criados de forma compulsória, por força de Lei, sua organização e gestão eram integralmente entregues aos particulares das respectivas profissões, coletivamente interessados nas suas atividades e, consequentemente, não integravam a estrutura da Administração Pública. Exerciam funções delegadas do Estado, tais como a manutenção do registro dos profissionais legalmente habilitados, com exercício na respectiva Região; a análise e decisão sobre assuntos atinentes à ética profissional; a fiscalização e a imposição de penalidades, que incluíam a suspensão ou a cassação da autorização para o exercício profissional; o exercício de atos de jurisdição que por Lei lhes fossem cometidos; a emissão de pareceres e de laudos arbitrais em questões suscitadas pelos profissionais, dentre outras. Tinham competência de dispor sobre seus próprios regimentos internos e seu pessoal sujeitava-se à legislação do trabalho, inscritos, para os efeitos da previdência social, no Instituto de Aposentadoria e Pensões dos Comerciários.
A promulgação da Constituição Federal de 1988, que, como se viu, delimitou de forma mais precisa o contorno jurídico das autarquias impingindo a todas elas a observância integral do Direito Público, alterou o ambiente jurídico que dava sustentação à existência de autarquias de natureza corporativa, detentora de competências privativas de estado no campo das profissões, que atuavam fora da Administração Indireta.
A Carta de 1988 incluiu disposições específicas sobre a regulação do trabalho e das profissões no País, que fixaram como competências privativas da União: (i) legislar sobre a organização do sistema nacional de emprego e condições para o exercício de profissões (art. 22, XVI); (ii) organizar, manter e executar a inspeção do trabalho (art. 21, XXIV); e (iii) instituir contribuições sociais, de intervenção no domínio econômico e de interesse das categorias profissionais ou econômicas, como instrumento de sua atuação nas respectivas áreas, observado o disposto nos arts. 146, III, e 150, I e III, e sem prejuízo do previsto no art. 195, § 6º, relativamente às contribuições a que alude o dispositivo. Além disso, a nova ordem constitucional suprimiu delegação de competências a particulares para atuarem na regulação profissional, que havia sido concedida na Constituição Federal de 1937, e ratificada nas Constituições de 1946 e 1967.
A Constituição de 1988 extirpou de seu texto os conceitos corporativos do Estado Novo que, na prática, havia integrado os sindicatos e associações profissionais na estrutura do Estado, delegando-lhes funções de Poder Público, muito embora outros aspectos destas concepções, remanescentes do modelo corporativo de Estado, tais como a unicidade sindical, o imposto sindical e outros, tenham permanecido no ordenamento jurídico nacional (SALGADO, 2012).
Em uma tentativa de resgatar a delegação anteriormente concedida aos Conselhos de Profissões, a Lei 9.649, de 27 de maio de 1998, de iniciativa do Poder Executivo, estabeleceu em seu art. 58, dentre outros dispositivos, que: (a) os serviços de fiscalização de profissões regulamentadas seriam exercidos em caráter privado, por delegação do poder público, mediante autorização legislativa; (b) sua organização, estrutura e funcionamento seriam disciplinadas mediante decisão do plenário do conselho federal da respectiva profissão, garantindo-se que na composição deste estejam representados todos seus conselhos regionais; (c) os conselhos, dotados de personalidade jurídica de Direito Privado, não manteriam com os órgãos da Administração Pública qualquer vínculo funcional ou hierárquico; (d) o regime de trabalho dos empregados dos conselhos seria o da CLT, vedada qualquer forma de transposição, transferência ou deslocamento para o quadro da Administração Pública direta ou indireta; (e) os conselhos ficavam autorizados a fixar, cobrar e executar as contribuições anuais devidas por pessoas físicas e jurídicas, bem como preços de serviços e multas, que constituirão receitas próprias, considerando-se título executivo extrajudicial a certidão relativa aos créditos decorrentes; e (f) o controle das atividades financeiras e administrativas dos conselhos de fiscalização de profissões regulamentadas seria realizado pelos seus órgãos internos, devendo os conselhos regionais prestar contas, anualmente, ao conselho federal da respectiva profissão, e este aos conselhos regionais.
Mas a Lei nº. 9.649, de 1998 foi arguida quanto à sua constitucionalidade, na ADI n. 1.717-6/DF e julgada inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal, que impugnou os §§ 1º, 2º, 4º, 5º, 6º, 7º e 8º do art. 58, por entender que, à luz da Carta de 1988, as entidades com funções de fiscalização e regulação das profissões devem ter natureza jurídica pública e autárquica, criadas por Lei e com delegação para o desenvolvimento de atividades típicas de Estado, não lhes cabendo o figurino de entidades de Direito Privado.
Desde então a natureza jurídica dos conselhos de profissões passou a estar mergulhada em indefinição político-jurídica. Os posicionamentos posteriores do STF acerca da matéria, ainda que poderosos balizadores, têm sido fragmentados e parciais, por se aterem, como deve ser, ao aspecto jurídico arguido; insuficientes para firmar entendimento definitivo sobre o modelo jurídico-institucional que deve ser adotado pelo Poder Executivo no campo da regulação do exercício profissional. Cite-se, como exemplo, trecho da decisão do Supremo Tribunal Federal, de 6 de agosto de 1998, que deu provimento ao Mandado de Segurança n. 22.643-9-SC :
“os Conselhos Regionais de Medicina, como sucede com o Conselho Federal, são autarquias federais sujeitas à prestação de contas ao Tribunal de Contas da União por força do disposto no inciso II do art. 71 da atual Constituição”. (Brasil. Supremo Tribunal Federal, 1998)
Em seu voto, o Ministro Relator Moreira Alves destacou que:
“esses conselhos – o Federal e os Regionais – foram, portanto, criados por Lei, tendo cada um deles personalidade jurídica de Direito Público, com autonomia administrativa e financeira. Ademais, exercem eles atividade de fiscalização de exercício profissional que, como decorre do disposto nos arts. 5º, XIII, 21, XXIV, e 22, XVI, da Constituição Federal, é atividade tipicamente pública. Por preencherem, pois, os requisitos de autarquia, cada um deles é uma autarquia, embora a Lei que os criou declare que todos, em seu conjunto, constituem uma autarquia, quando, em realidade, pelas características que elas lhes dão, cada um deles é uma autarquia distinta”.
Numa tentativa de atender a interpretação da Suprema Corte, a Lei nº. 12.378, de 2010, de iniciativa do Poder Executivo federal, criou o Conselho de Arquitetura e Urbanismo do Brasil (CAU/BR) e os Conselhos de Arquitetura e Urbanismo dos Estados e do Distrito Federal (CAUs) sob o figurino jurídico de autarquias, dotadas de personalidade jurídica de Direito Público, com autonomia administrativa e financeira, mantendo as mesmas regras de Direito Privado de organização e funcionamento e, portanto, sob discutível constitucionalidade. Pode-se dizer que a Lei nº. 12.378, de 2010, ao instituir o Conselho de Arquitetura e Urbanismo do Brasil – CAU e os conselhos regionais com o mesmo figurino jurídico dos conselhos de profissões instituídos na vigência dos textos constitucionais anteriores à Carta de 1988, incorreu em declara ousadia por ignorar as disposições constitucionais relativas às autarquias e as indefinições e inseguranças jurídicas da “delegação” de funções públicas a particulares.
Segundo as disposições da mencionada Lei, o CAU/BR (conselho federal) foi dotado de estrutura de governança constituída por representantes das instituições de ensino de arquitetura e urbanismo e dos conselhos regionais, eleitos por voto direto e obrigatório dos profissionais do Estado que representam; cujo presidente é também eleito entre seu pares. A Lei previu que: (a) suas atividades fossem custeadas exclusivamente pelas próprias rendas oriundas da arrecadação direta de anuidades e contribuições dos arquitetos e urbanistas neles registrados, assim como de multas, taxas e tarifas de serviços, além de eventuais doações, legados, juros e receitas patrimoniais e de convênios firmados com o Poder Público; e (b) que o Conselho deveria observar regras próprias de planejamento e orçamento público; estrutura e funcionamento definidos em regimento próprio, aprovado pelo seu conselho; autorização para contratar empresa de auditoria, conforme dispuser o seu Regimento Geral (art. 28, caput XV).
Por outro lado, a Lei nº. 12.378, de 2010 dotou os novos conselhos de requisitos eminentemente de Direito Público, tais como a imunidade tributária, com base no art. 150, VI, a, da Constituição Federal; e a submissão à auditoria do Tribunal de Contas da União.
A Lei foi omissa no que tange ao regime de pessoal e demais legislação aplicável aos Conselhos de Arquitetura e Urbanismo. Se observada as legislação e jurisprudência atuais, o pessoal deveria ser estatutário e os Conselhos deveriam se submeter ao regime aplicável à Administração Pública Indireta de Direito Público, inclusive para efeitos da supervisão ministerial.
Referência:
SALGADO, Valéria Alpino Bigonha. 2012. Manual de Administração Pública Democrática. Conceitos e Formas de Organização. Campinas - SP : Saberes Editora, 2012.